Devemos regar as palavras dos sobreviventes do Holocausto como se fossem sementes de amor e de tolerância, inspirados pelo desejo de assegurar a dignidade e os direitos humanos para as futuras gerações. Através destes testemunhos adentramos aos tempos sombrios do nazismo onde a morte não escolheu primaveras para semear o ódio. Incentivando os sobreviventes a vasculhar lembranças no seu “armazém da memória” estaremos ajudando-os a escrever a história de um mundo marcado pela violência e pelo ódio. e, também, estaremos retirando do anonimato atos incríveis de solidariedade e de amor praticados por aqueles que salvaram uma ou mais vidas. Ao nomear os personagens que fazem parte da sua história, o sobrevivente aponta para os grupos dos perpetradores e das vítimas, cumprindo com a sua missão de continuar sendo uma testemunha ocular embebida de lembranças que nos induzem a reflexão e a ação. Muitas vezes, a fala de um sobrevivente da Shoah se concentra no drama vivenciado pelos judeus perseguidos pelo nazismo; em outras, sua linguagem nos remete aos escombros da intolerância que atingiram também os ciganos, as testemunhas de Jeová, os homossexuais, os deficientes físicos, os comunistas e outros tantos párias nomeados pela ideologia do terror institucionalizado. Algumas passagens apresentam-se como pesadelos indescritíveis que obrigam o narrador a buscar forças para continuar. Cada frase se apresenta como um constante despertar para a natureza humana. Enfim, cada testemunho é um estado de espírito, uma “janela d’alma”, usando aqui uma expressão de Lasar Segall.
Cito aqui alguns livros de memórias recentemente publicados com o incentivo do Arqshoah e que merecem ser lembrados como exemplos de uma geração que assumiu seu papel de guardiã da história de seus pais: Primaveras Perdidas...! Algunas Memórias, de Hermine Kirchhausen ou “Mimi” (Perú, 2011), mãe de Leslie Marko, coordenadora das Oficinas Interativas de Teatro do Arqshoah; Nos Campos da Memória. a História de Kiwa Kozuchowicz. Prisioneiro b513-Sobrevivente do Holocausto (Humanitas, 2012), narrativa recuperada por sea filha Rosana Kozuchowicz Meches; As Catorze Vidas de David: O Menino que tinha nome de Rei, que nos conta a trajetória de David Lorber Rolnik e reedita os poemas de Malka Lorber Rolnik, sua esposa, ambos sobreviventes da Shoah. Este testemunho foi recuperado por seus filhos Szyja, José e Blima Rajzla Lorber e encontra-se no prelo pela Editora Sefer. Alguns comentários sobre estes testemunhos já publicados: em Primaveras Perdidas, nossa querida “Mimi” desperta para o mundo ensolarado e florido da sua “velha” Viena reconhecida pelos sons das valsas e pelos perfumes, expressões de uma felicidade perdida: perdida a partir do momento em que os nazistas, com suas botas grosseiras, marcharam sobre a Áustria em 1938. Ao descrever este momento de ruptura/fratura histórica, a autora assume sua condição de testemunha ocular de um dos períodos mais violentos da história da civilização ocidental. Sob a forma de uma crônica anual, reconstitui os mecanismos de opressão sustentados pelo estado alemão que, instigado pelo antissemitismo sem limites, planejou a morte de milhões de judeus, ciganos, testemunhas de Jeová e dissidentes políticos. Por sua vivência traumática, Mimi concentra-se na sua condição de menina e mulher judia. Algumas passagens de sua narrativa devem ser lidas como estilhaços da memória cujos contornos são indefinidos, apagados pelo esquecimento. Seus relatos nos colocam diante da história da bestialidade humana, expressão assumida pela autora que não esconde sua revolta diante do mundo dividido em seres “normais”e “anormais”, “arianos” e “raças impuras”, sadios” e “leprosos’. O violento massacre da Kristallnacht, a “Noite dos Cristais Quebrados” é descrito como uma noite de perdas e desaparecimentos.
A partir do ano de 1938, as palavras de Mimi são de dor, tristeza e choro pelas primaveras perdidas, metáfora que anuncia os ventos da guerra e do Holocausto. A sensação de desespero e terror surge em meio ao labirinto de fatos por ela testemunhados: a busca por um visto da salvação, a estrela amarela costurada nas vestes dos judeus, os espaços da exclusão, enfim: as marcas que delineavam o “mundo dos felizes” e o “mundo dos párias”. ao recuperar suas lembranças do terror nazista, a autora reconstitui seus tristes e sombrios dias passados na Bélgica, rota de fuga para muitos judeus expatriados que, sem documentos, não tinham para onde ir. Infelizmente, nem todos tiveram a sorte de sobreviver à deportação e ao extermínio. A narrativa do livro Nos Campos da Memória é construída em círculos temporais que garantem ao leitor acompanhar a trajetória de Kiwa Kozuchowicz, pelos guetos, campos de concentração e de trabalho, espaços da exclusão impostos pelos nazistas aos indesejáveis por sua “raça” ou credo político. Coube a Rosana, sua filha (e colaboradora do Arqshoah), lidar com as lembranças dos traumas, comuns aos sobreviventes de uma tragédia. Com paciência e sabedoria, Rosana foi abrindo as janelas d’alma de seu pai, em busca de vestígios de um passado que, durante anos, ele preferiu esquecer. Consciente da importância do registro, Rosana incentivou Kiwa a contar suas histórias, pequenos “casos”, que foram sendo amarrados pelos fios da memória. Como ouvinte das histórias narradas por Kiwa, Rosana garantiu o registro dos detalhes que, enquanto indícios de uma trajetória, foram enriquecidos com documentos pesquisados em arquivos europeus e em obras de referência. Tal iniciativa deve ser interpretada como um exemplo para as gerações da Shoah.
Cenários e personagens foram reconstituídos tendo como roteiro as lembranças de Kiwa que, entre 1939 e 1945, testemunhou a violência sem limites praticada pelos nazistas e colaboracionistas. A voz de Kiwa vai, ao longo do livro, sendo enriquecida pela “voz” de Rosana que, através de notas de rodapé, compõe um duo com seu pai como se fosse o baixo continuum de uma orquestra. Árdua tarefa para ambos que carregam o fardo da memória, cada qual delineado enquanto testemunhos de épocas distintas. Kiwa desponta enquanto personagem e sobrevivente do Holocausto; Rosana, enquanto filha, assume a sua missão de herdeira da história de seu pai. Em várias passagens, Kiwa demonstra que chegou a perder a possibilidade de ação, mas sem perder as esperanças. De cabeça erguida, lutou por dois pratos de comida e por mais um pedaço de pão, pensando sempre em compartilhar com um companheiro. Enfim, este homem foi testemunha de um genocídio único na história da humanidade e como tal deve ser lembrado. Prestigiem o lançamento do seu livro hoje (dia 25 de abril), na Livraria da Vila, Shopping Higienópolis, das 18:30h às 21:30h. Através deste pequeno ensaio, introdutório a futura coleção Vozes do Holocausto rendo as mais sinceras homenagens aos sobreviventes do Holocausto e ativistas que lutam contra a intolerância. Que o ato de lembrar seja endossado por outros tantos sobreviventes; que outros tantos filhos e netos de sobreviventes venham a assumir o legado do pertencimento que envolve as gerações da Shoah.
Publicado pela B'nai B'rith do Brasil