quinta-feira, 15 de março de 2012

Artigo de Raquel Stivelman publicado no Jornal do Brasil em novembro de 1994 após a visita que a família Stivelman fez a “Babi Yar”

 

“Babi Yar” 

Presenciamos hoje, de maneira assustadora, a intensa banalização do mal, quer no plano individual quanto no social. A violência, os crimes, as mortes de vítimas inocentes não mais surpreendem tanto. Tornaram-se uma rotina comum e isto é assustador. O acontecimento violento de hoje apaga a rápida lembrança do de ontem e o de amanhã irá substituir o de hoje numa sucessão rotineira do mal. Este tipo de acontecimento é terrivelmente perigoso pois cria uma enganosa e maléfica aparência de normalidade no que deve ser anormal e antiético no ser humano. Daí a necessidade imperiosa de se rebelar, de se revoltar, de bradar contra qualquer tipo de violência cometida contra qualquer ser humano, individual ou coletivamente.
Recém chegada de uma interessante e exaustiva viagem à Rússia e ao interior da Ucrânia, tive oportunidade de visitar na cidade de Kiev, nos dias atuais mais uma vez conturbada por agitações e instabilidade político-social, um memorial erigido em lembrança de “Babi Yar”, local em que em somente dois dias foram fuzilados aproximadamente 33.750 judeus. Trata-se do exato local onde se desenrolou a mais sangrenta e notória de todas as matanças de judeus no Holocausto, levando-se em conta o número de pessoas assassinadas em tão curto período de tempo. Ainda que repetida e exaustivamente, é preciso lembrar, falar sempre das barbáries cometidas e a de “Babi Yar” foi pouco enfatizada. Yar na língua ucraniana significa ravina, desfiladeiro e Babi é o tratamento carinhoso de avozinha.
Com o coração apertado e um nó no peito, nos dirigimos para este local onde deparamos em primeiro lugar, com um imenso memorial soviético, imponente e grandioso como quase tudo na antiga URSS. Mais adiante, um pouco à esquerda, encontra-se um memorial bem menor e mais modesto sob a forma de uma Menorah, o candelabro judaico simbólico que foi modelado de acordo com um já existente no Templo de Jerusalém. É justamente onde está o memorial judaico que se situa o local em que tantos judeus foram fuzilados. Durante meio século, as autoridades soviéticas esconderam propositadamente qualquer manifestação de lembrança daquela chacina. Em 1991, o grande poeta e humanista judeu Elie Wiesel, prêmio Nobel, declarou publicamente que quando visitou “Babi Yar” em 1965, ninguém quis lhe dar informação alguma sobre as cenas terríveis que lá aconteceram. São suas palavras textuais: “Ninguém queria me dizer onde tudo tinha acontecido. Era como se nunca, nada tivesse acontecido”. 
A despeito deste estado de coisas, e apesar do perigo que havia em visitar e lembrar a tragédia, muitos judeus do mundo todo, teimavam em procurar o local das ravinas, cena deste horrível fuzilamento em massa. Em 1991, com o esfacelamento da antiga União Soviética, o governo ucraniano admitiu e reconheceu este local como o fatídico logradouro onde tantos judeus foram mortos e mandou erigir o memorial que lembrava os cinqüenta anos de “Babi Yar”. Os nazistas alcançaram Kiev entre os dias 19 e 25 de setembro de 1941. No dia 22, soldados russos realizaram duas explosões. A segunda explosão destruiu o quartel general alemão e grande parte do centro da cidade. Como retaliação, no dia 28 de setembro, as autoridades alemãs convocaram o comparecimento maciço dos judeus da cidade de Kiev e exigiam que todos estivessem reunidos no local assentado para serem transferidos no dia seguinte. Tudo isso estava acontecendo no período do ano mais sagrado do calendário judaico: os dez dias entre o Rosh Hashaná e Yom Kipur. Cartazes anunciavam: “Todos os judeus de Kiev e arredores são intimados a comparecer às 08;00h, segunda-feira, 29 de setembro de 1941, na esquina das ruas Munskovskaya e Dukhtorovskaia, perto do cemitério local, portando seus documentos, dinheiro, valores, roupas quentes etc. Aqueles que desobedecerem esta convocação serão imediatamente fuzilados”. Os velhos, os doentes, as crianças, as mulheres se amontoavam nos lugares designados (somente estes permaneceram em Kiev, porque aqueles que suspeitando do perigo iminente e tendo recursos, abandonaram a cidade). Não suspeitavam ou não queriam suspeitar do que iria lhes acontecer em seguida. Acreditaram que iriam ser deslocados para outra cidade. Triste ilusão, puro engodo! O relatório oficial da SS responsável por este extermínio em massa declarou que 33.771 judeus foram fuzilados em “Babi Yar” nos dias 29 e 30 de setembro de 1941. Diante do local, pode-se imaginar cenas descritas na escassa literatura que sobrou a respeito do massacre. As valises e as pequenas trouxas de alimentos que cada um tinha permissão de levar foram cuidadosamente empilhadas. Como um rebanho de carneiros, como animais, homens e mulheres foram enfileirados nas bordas dos desfiladeiros que tinham em média 100 metros de comprimento por 50 metros de profundidade. No lado oposto da ravina, estavam os nazistas com suas metralhadoras assassinas. As vítimas, formadas em fileiras, iam morrendo e tombando no fundo da ravina. Os semimortos, os feridos caiam do mesmo jeito por sobre os cadáveres anteriores e novas fileiras se formavam e o processo se repetia até o aniquilamento total. 
De acordo com o relato do jornalista Edward Crankshaw, após o fuzilamento sucessivo, os nazistas embebiam a área com gasolina e queimavam os corpos.Os policiais ucranianos, colaboradores dos nazistas, formavam um corredor onde as vítimas eram açoitadas e direcionadas para a ravina imensa, em meio a pauladas, imprecações e cães bravos que iam dilacerando suas carnes. Toda a região estava cercada com arame farpado. Na boca da ravina se encontravam as fileiras de judeus num terreno estreito acima do precipício de 40 a 50 m de profundidade. No lado oposto, como já foi mencionado, mas é preciso mentalizar o cenário, estavam os alemães com suas metralhadoras. Os mortos, os feridos, os semi-vivos tombavam uns sobre os outros e iam sendo esmagados. Em seguida, os próximos cem judeus eram trazidos e tudo se repetia. As crianças eram atiradas pelos policiais que as pegavam pelas perninhas para serem arremessadas na ravina. Diariamente, pilhas gigantescas de toscos sapatinhos infantis enchiam caminhões e mais caminhões que partiam de “Babi Yar”. O escritor A. Anatole Kuznetsov escreveu um poderoso romance documentário sobre Babi Yar. No romance “ A tempestade”, Ilya Ehrenburg descreve a cena em que soldado alemão arranca um bebê dos braços de sua mãe e o atira na ravina. Coube a um poeta russo, não judeu, chamar a atenção do mundo para o que aconteceu em “Babi Yar”: Yevgeny Yevtushenko desafiou o regime soviético e publicou seu famoso poema Babi Yar. Dimitri Shostakovich marcou seu protesto contra o anti-semitismo na Rússia na sua famosa “Décima Terceira Sinfonia”. Com nossas lágrimas rolando pelas faces, meu marido recitou o Kadish (oração judaica pelos mortos) na beira da ravina. Um silêncio somente interrompido pelo farfalhar das folhas de outono nos envolvia e parecia que podíamos talvez entreouvir algumas vozes das vítimas ou ecos de choros de crianças. Nos nossos corações estes sons estão sempre presentes. Ainda que com muita dor, é preciso lembrar, lembrar sempre para tentar evitar que tudo se repita! 

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