Diferentemente do que ocorria aos seus correligionários palestinenses, os judeus da Babilônia viveram, em geral, uma época de tranqüilidade e segurança que lhes haveria de trazer grandes benefícios em relação ao desenvolvimento de sua vida cultural. Em algumas localidades da região mesopotâmica, como, por exemplo, Nehardea e Pumbedita, que eram habitadas exclusivamente por judeus, não era de estranhar tal sossego; mas também dele gozavam nas cidades em que conviviam com crentes de outras religiões. Sua vida transcorria placidamente e gozavam de prosperidade econômica, seja dedicando-se à agricultura ou à artesania, seja participando da vida comercial do país.
A par da liberdade física, gozavam de certa independência política, já que à frente dos judeus achava-se o Resh Galuta (literalmente, "chefe do exílio"), ou seja, o exilarca, dignidade que ostentavam os descendentes de David, confirmados pelo monarca reinante. O exilarca era o representante dos judeus reconhecido pelas autoridades do país e ocupava lugar destacado nas grandes solenidades da côrte. Mas, junto a isto, tinha atribuições mais concretas: atuava como juiz em causas civis e também penais de seus correligionários. Alguns exilarcas aliás, gozavam de grande aprêço e autoridade em assuntos propriamente religiosos, devido a seus conhecimentos particulares.
Lógico é que sob tais circunstâncias favoráveis florecesse e se desenvolvesse no decorrer de três séculos um grande movimento cultural, centrado principalmente na ciência religiosa muito embora sem excluir por inservíveis ou inúteis os conhecimentos profanos. Durante esses trezentos anos discutiu-se a Mishná de Rabi e, ao final, foi reunido todo o material elaborado, constituindo-se assim a Guemará.
As Sete Gerações de AmoarimEstes comentários foram realizados pelos amoarim babilônicos, designados com o título de rav ("mestre"), que se agrupam, por razão de métido, em sete gerações(*) que abrangem aproximadamente as seguintes épocas (junto aos períodos vão os nomes dos principais sábios de cada geração):
(*)Os palestinenses vêm designados com o título de rabi e só desenvolveram sua atividade durante as cinco primeiras gerações.
1ª | 200-250 | Rav e Samuel. |
2ª | 250-300 | Huna e Judá bar Ezequiel. |
3ª | 300-335 | Huna b. Hía, Hisda, Rabá, José bar Hía. |
4ª | 335-360 | Abaié e Rava. |
5ª | 360-375 | Papa. |
6ª | 375-425 | Ashi. |
7ª | 425-500 | Ravina II. |
1ª geração (200-250):A primeira geração dos amoarím babilônicos havia-se formado intelectualmente na Palestina, principalmente sob a direção de Rabi. À morte do Mestre, a maioria deles regressou ao seu país natal levando consigo a Mishná, a cujo comentário iam dedicar-se. Desse modo transportaram para as margens do Eufrates a bagagem de conhecimentos, a ciência adquirida nas escolas palestinenses, e ali desenvolveram, paralela e simultaneamente aos seus correligionários palestinenses, uma grande atividade no terreno da ciência religiosa. Dois foram os principais introdutores e ao mesmo tempo os que criaram as bases de tais estudos: Rav e Samuel.
Aba Arecha (175-247), mais conhecido por Rav, ou seja, "o mestre" por antonomasia, era sobrinho de R. Hía, o autor da Tosefta. Havia estudado em Séforis, onde tinha sido ordenado por R. Judá ha-Nassi. Ao regressar à Babilônia, foi nomeado chefe da escola de Nehardea, fundada anos antes, mas cujo brilho intelectual fora escasso até então. Não obstante, renunciou ao cargo em favor de seu bom amigo e condiscípulo, Samuel, que era justamente natural de Nehardea. Durante algum tempo, Rav teve a seu cargo a inspeção de pesos e medidas e, em geral, a vigilância do mercado. Mas pelo ano de 219, após haver considerado o abandono cultural em que se achava a região de Sura, decidiu-se a abrir ali uma Academia que haveria de compartir, primeiro com a de Nehardea e a seguir com a de Pumbedita (fundada mais tarde), a supremacia religiosa do judaísmo babilônico.
Sua escola viu-se de pronto concorrida, assistindo a ela numerosos discípulos, os mais pobres dos quais eram ajudados por Rav graças aos emolumentos que obtinha de seus cargos civis. Para incrementar ainda mais o comparecimento à sua escola, organizou o ensino de tal modo que possibilitava a assistência de que precisava lutar pelo seu sustento; duas vezes por ano, durante os meses de Adar e Elul(*), chamados "meses de reunião", dava conferências públicas às quais assistiam numerosos discípulos que dedicavam o resto do ano aos seus afazeres profanos. Permaneceu à frente de Sura até sua morte, em 247.
(*)Ou seja, no princípio da primavera e do outono, respectivamente.
Seu caráter, semelhante ao de Hilel, era suave, dócil, benevolente. Desconhecemos o método que seguia em sua docência; porém sabemos que se dedicava a comentar sistematicamente cada um dos tratados da Mishná elaborada pelo seu Mestre, e que com suas interpretações e deduções agravou bastante as leis rituais, embora em questões de direito civil sua opinião tenha tido pouco peso, sendo preferidas as decisões de seu amigo Samuel.
Mar Samuel (180-254), conhecido por Samuel (também por Arioch), era filho de Aba bar Aba. Havia comparecido aos ensinamentos do patriarca Judá, ao qual tinha curado de uma grave affecção; porém, em que pesem os seus grandes conhecimentos, não chegou a ser ordenado.
Natural de Nehardea, Samuel ocupou a direção da escola por renúncia de Rav. Já mencionamos que gozava de grande autoridade em assuntos de direito civil. A ele deve-se a célebre sentença Dina d'malcuta dina, "a lei do estado é a lei" que tanta importância haveria de ter para o futuro dos judeus estabelecidos nos mais variados territórios e submetidos a leis estatais muito diferentes das suas próprias.
Além de conhecer profundamente a tradição e de saber interpretá-la, Samuel sobressaia também em medicina(*) e em astronomia, estudo no qual fora introduzido por seu amigo pagão Ablat e não se envergonhava de afirmar, nem a modéstia lhe vedava dizer, que "os caminhos do céu lhe eram tão familiares como as ruas de Nehardea".
(*) Cf. SCHAPIRO, D.: Les connaissances médicales de Mar Samuel. Revue des Etudes Juives. XLII (1901), 14-26.
Assim, pois, Rav e Samuel, unidos por profunda amizade, se completavam e juntos constituíam a máxima autoridade religiosa do país, até tal extremo que o conhecimento dos demais sábios de sua época são como uma "gota d'água comparada ao oceano".
Nessa ocasião sobressaiam na Palestina alguns sábios, cujos nomes aparecem freqüentemente nas páginas do Talmud babilônico, pelo que não será inútil citar os mais importantes: R. Ushaia, que recolheu parte dos baraitot; R. Josué ben Levi, adversário da Agadá e que por capricho do destino é protagonista de muitos relatos agádicos; R. Hanina ben Hama, assim como Iohanan bar Napaha e Simão bar Laquish, que citaremos na segunda geração.
2ª geração (250-300):Dois são também os principais sábios desta geração: o primeiro formado junto a Rav e o outro discípulo de Samuel; ambos seguiram os caminhos e os métodos iniciados pelos seus respectivos mestres. Huna (212-297), que estudou com Rav, sucedeu ao seu mestre à frente da escola de Sura. Homem de modesta posição, que por si mesmo cultivava o seu campo, chegou a enriquecer e a possuir vultosas riquezas; mas a sua fama, deve-a aos seus vastos conhecimentos e, sobretudo, aos seus dotes de organizador, pois foi ele quem dotou o Judaísmo babilônico de uma organização que persistiu no decorrer de vários séculos. Durante os cinqüenta anos que permaneceu à frente da escola de Sura, esta alcançou grande esplendor e importância, até o extremo da autoridade de R. Huna ser reconhecida não só na Babilônia, como também na própria Palestina, onde foi sepultado por ocasião de sua morte.
Judá bar Ezequiel (220-299), o outro sábio mais destacado da época, era discípulo de Samuel, que o chamava "o sagaz" por suas grandes faculdades dialéticas. Dedicou-se a estudar a fundo as leis jurídicas de aplicação imediata, desdenhando ocupar-se das leis de pureza assim como as prescrições que careciam então de utilidade, ou melhor especificando, as referentes ao culto do Templo ou aquelas que só tinham aplicação na Palestina.
Na segunda metade do século III, Judá bar Ezequiel fundou em Pumbedita uma escola que depois da destruição de Nehardea (destruição realizada por Odenato, príncipe de Palmira, em 259), alcançou grande importância, disputando a supremacia à de Sura. Os membros de Pumbedita distinguiram-se sempre por sua grande profundidade dialética, até mesmo exagerada, ao passo que os sábios de Sura se destacavam pela vastidão de seus conhecimentos, mas eram pouco dados a deduzir novas leis. Estas são precisamente as características de cada uma das escolas.
Por ocasião da morte de Huna, em 297, Judá bar Ezequiel (cuja autoridade era também reconhecida na Palestina) foi nomeado chefe de Sura, cargo que ostentou durante dois anos.
Entre os demais sábios da época merecem destacar-se os nomes de Raba bar Abuha e, na Palestina, as figuras de Iohanan bar Napaha (179-279), aluno de Rabi, e de seu cundado, o célebre R. Simeão ben Laquish(*) (200-275), apelidado "remove-montanhas" que também havia conhecido Rabi, assim como o agadista Simlai, que polemizou com os cristãos.
(*) Também chamado Resh - R(abi) Sh(imon) - Laquish.
3ª geração (300-335):Tendo falecido Judá bar Ezequiel, recaiu a direção da Academia de Sura nas mãos de R. Hisda (217-309) que se havia formado junto a Rav. Embora houvesse assistido as lições de R. Huna, seguiu o método dialético da escola de Pumbedita. Pobre em sua juventude, R. Hisda chegou a conseguir uma riqueza que se tornou mesmo proverbial. Por ocasião de sua morte, foi sucedido por Rabá bar Hana, que dirigiu Sura desde 309 até 323.
Nessa época os discípulos de Sura começam a emigrar, dirigindo-se à escola de Pumbedita, para cuja direção havia sido eleito Raba bar Nahmani, o qual renunciou em favor do rico Huna bar Hía, que manteve o cargo até a sua morte, ocorrida em 309.
Morto este, estabelece-se um pleito sucessório. Dois candidatos disputam o cargo: José bar Hía e Raba bar Nahmani. Mas como um astrólogo havia predito ao primeiro que só exerceria o cargo durante dois anos, renunciou este ao seu opositor.
Raba bar Nahmani (270-330), conhecido simplesmente por Raba, era natural da Galiléia e havia estudado nas escolas de seu país natal; porém logo se transferiu para a Babilônia, onde alcançou grande prestígio na halachá - também é conhecido por "remove-montanhas" -, ao contrário de seus irmãos Ushaiá e Hananiá, que se destacaram como agadistas.
Sob sua direção a escola de Pumbedita alcança o auge, comparecendo a ela doze mil discípulos, aos quais explicava sistematicamente todos os tratados da Mishná, porém entremeando as suas explicações com relatos agádicos para atenuar, desse modo, a aridez da matéria haláchica.
À sua morte, foi sucedido pelo já mencionado José bar Hía (270-333), que gozava de reputação pela enorme quantidade de conhecimentos que guardava em sua memória, razão que explica o apelido de "Sinai" pelo qual é conhecido. Porém de corpo enfermiço, perdeu primeiro a vista e, mais tarde, a memória, o que é um indício do perigo que encerrava entesourar mais e mais conhecimentos confiando-os unicamente à memória para que uma enfermidade pusesse fim a toda a ciência adquirida.
A esta geração pretencem, entre outros: Rav Sheshet, o orgulhoso R. Nahman bar Jacob (235-324), discípulo de Samuel, casado com Ialta, filha do exilarca, mais orgulhosa ainda que o seu marido; e também o babilônio R. Zeira, cuja atividade se desenvolve na Palestina em uma época em que lá gozavam de preferências o agadista Abahu e os halachistas R. Ami e R. Ashi.
4ª geração (335-360):A José bar Hía, chamado o Cego, sucedeu Abaié, sobrinho do antes citado Raba bar Nahmani, que junto com Rava bar José bar Hama personalizava a ciência religiosa daquela época, e ambos aparecem citados em quase cada página do Talmud babilônico.
Abaié (280-338), cujo verdadeiro nome era Nahmani - trocou-o seu tio - exerceu seu magistério em Pumbedita numa época na qual se acentua a decadência iniciada na geração anterior.
Rava bar José bar Hama (299-352), chamado usualmente Rava, era natural de Mahoza, localidade na qual fundou uma escola a cuja frente permaneceu até a morte de Abaié, ao qual sucedeu em Pumbedita. Chegou a ser tão rico como R. Hisda e tão sábio como R. Huna, porém, a despeito de seus desejos, não logrou adquirir a modéstia que caracterizava Raba bar R. Huna.
Nesta geração destacam-se também: na Babilônia, R. Nahman bar Isaac (280-356), sucessor de Rava em Pumbedita; e na Palestina, o patriarca Hilel II e R. Jeremias.
5ª geração (360-375):Continua, em ritmo acelerado, a decadência das escolas, pelo que são poucos os doutores que se podem equiparar aos citados nas páginas anteriores. O mais importante é R. Papa bar Hanan (300-375). Rico e órfão desde tenra idade, fundou, em 356, uma escola em Naresh, perto de Sura. R. Papa, com seu amigo R. Huna bar Josué, professor da referida Academia, quis encher o vazio que se havia produzido com a morte de Rava; mas em que pesem os seus bons desejos, não o lograram por carecerem da forte personalidade do Mestre.
Enquanto isso, de 356 a 377, a escola de Pumbedita era dirigida por R. Nahman bar Isaac.
Nessa época foi terminada a redação do Talmud palestinense, por obra de rabís pouco conhecidos e dos quais pouca coisa sabemos, tais como: R. Jonas, Tanhum bar Aba e o patriarca Judá IV, falecido no ano de 400.
6ª geração (375-425):As condições favoráveis que até então haviam sustentado ao Judaísmo babilônico começam a decrescer e, em certas ocasiões, sofrem prolongado eclipse. Ante os perigos, físicos e espirituais, que ameaçam a vida, começa-se a sentir a necessidade de pôr a salvo a tradição.
Apesar de haver Amemar restabelecido a Academia de Nehardea, à frente da qual esteve de 390 a 422, a supremacia volta uma vez mais à Academia de Sura, dirigida por uma das maiores figuras do período talmúdico, a de R. Ashi.
Rabana Ashi (352-427) era de família acomodada e ainda jovem (tinha apenas 23 anos) quando foi nomeado, cerca de 375, chefe da Academia de Sura, cargo no qual permaneceu durante 52 anos. É evidente que esta longa permanência - tenha-se presente que durante o período em que Ashi esteve em Sura, em Pumbedita sucederam-se sete doutores - haveria de ter favoráveis efeitos no desenvolvimento e na fixação da tradição recebida. Rabana Ashi tinha, entre outras coisas, uma grande vantagem: à profundidade dialética própria dos doutores de Pumbedita unia os vastos conhecimentos tradicionais pelos quais eram célebres os mestres de Sura. Isto conferiu-lhe grande autoridade e explica o qualificativo de Rabana ("nosso mestre"), com que era designado.
Graças a ele, Sura converteu-se no centro indiscutível da vida religiosa do Judaísmo babilônico, tornando-se as suas aulas cada vez mais concorridas. Sua inteligência, autoridade e longa permanência no cargo tornaram possível que realizasse uma obra importante: recolher, recompilar tudo o que até então se havia elaborado. Cada ano, durante os "meses de reunião", dedicava-se a expor sucessivamente os tratados da Mishná, ao mesmo tempo que os ia comentando. Durante trinta anos foi recompilando materiais e, terminados estes, iniciou seu segundo período de atividades, ou seja, a elaboração mediante a qual havia de completar a obra de R. Judá ha-Nassí, pois a ele se deve a primeira ordenação do Talmud - alguns tratados foram redigidos em Pumbedita - que iria crescendo e sendo elaborado até que o encerrou definitivamente Ravina II.
Rabana Ashi não se limitou a levar a cabo um trabalho passivo ou de mera transmissão, mas, além disso, deduziu numerosas leis, resolveu as questões duvidosas e discutidas ou de conteúdo obscuro.
7ª geração (425-500):Em meados do século V a insegurança chega na Pérsia ao extremo. Ao mesmo tempo, e como conseqüência disso, a cultura religiosa vai decaindo a passos gigantescos, pois a maioria dos sábios se limita a repetir, sem tentar criar.
Entre 455 e 468, tem lugar um curto renascimento: é a época em que Mar, filho de Rabana Ashi, dirige a escola de Sura e, seguindo as diretrizes de seu pai, prossegue a obra deste. A seguir as coisas vão se complicando e a situação piora a olhos vistos. No ano de 470, o exilarca Huna Mari e vários sábios sofrem, pela primeira vez na comarca, o martírio. Quatro anos mais tarde foram suprimidos os tribunais judaicos e proibidas as assembléias dos "meses de reunião". Começa a emigração.
Os dois últimos amoraim, ou seja: Ravina II, chefe de Sura de 488 a 499 e R. José, de Pumbedita, consagram-se, com o auxílio de outros sábios, a terminar o Talmud, fazendo uma elaboração quase definitiva, até aproximadamente o ano de 500, quando R. José declara o Talmud encerrado.
A partir de então, como veremos, começa o trabalho do comentário ou, melhor ainda, do super-comentário, labor iniciado no século VII e que prossegue ainda.